
“Não é justo”, pensei enquanto caminhava. Havia ficado meio cega pelo pânico, por ter pensado que estava sendo caçada por um touro furioso, e lá ficava ele sentado em seu cavalo, me olhando de cima e rindo. Eu não estava habituada a ser olhada de cima ou gozada, e muito menos por um cowboy caipira!
“Espere só até eu me recuperar. Ele vai se arrepender”, prometi a mim mesma, pensando em todas as espirituosas e desmoralizantes palavras ofensivas que poderia usar contra Arthur.
Quando ia me aproximando de casa, pude ver que minha família tinha acabado de chegar e estavam todos descarregando sacos de mantimentos do carro.
- Como foi a sua caminhada, amor? – perguntou mamãe. – Viu algo interessante?
- Não muito. Um monte de vacas – respondi, tentando parecer neutra.
- Vacas? Você me leva para vê-las? – pediu Ana. – A gente não pode visitá-las?
- Depois do almoço – grunhiu papai, carregando uns pesados sacos de compras. – Dê uma mão, Lua.
- Vocês compraram o suficiente para alimentar um batalhão – comentei, pegando uma das sacolas.
- Bom, o armário da cozinha estava completamente vazio – disse mamãe. – e é uma bela viagem daqui até o armazém. Eu não queria me esquecer de nada.
Vovô ficou lá em pé comandando a nós todos como se fosse um general, enquanto passávamos com sacos e caixas cheias de provisões.
O almoço foi sem dúvida bem melhor do que tinha sido o café da manhã. Mamãe tinha comprado montes de frios, ingredientes para fazer uma bela salada, e pão fresco.
- Vou ter de aprender a fazer o meu próprio pão – observou ela. – A padaria mais próxima fica a quase quarenta quilômetros daqui. Não podemos rodar tudo isso cada vez que precisarmos de pão.
- Vou ter de aprender a fazer o meu próprio pão – observou ela. – A padaria mais próxima fica a quase quarenta quilômetros daqui. Não podemos rodar tudo isso cada vez que precisarmos de pão.
- Você poderia pegar pão quando for nos levar à escola. Assim não precisaria fazer pão em casa – sugeri.
- Mas eu quero fazer pão – retrucou-a. – Além de quê, que história é essa de levar vocês para a escola? Tem um ônibus que recolhe todos os alunos por aqui.
- Mãe, não quero ir num ônibus com um monte de caipiras. Vão colocar sapos nas minhas costas de novo ou coisas ainda piores.
- Você vai ter de aprender a lidar com isso, Lua – disse mamãe. – Vamos viver com simplicidade de agora em diante. Só vamos usar o carro quando não houver outra saída.
Eu estremeci. Provavelmente eles iam acabar trocando o carro por um cavalo ou uma charrete, ou por um par de mulas. A vida tal qual eu a conhecia estava se evaporando rapidamente.
Eu estremeci. Provavelmente eles iam acabar trocando o carro por um cavalo ou uma charrete, ou por um par de mulas. A vida tal qual eu a conhecia estava se evaporando rapidamente.
- A gente pode dar um passeio para ver as vacas agora: - perguntou Ana assim que o almoço terminou.
- Está bem – respondi, tentando soar mais animada do que realmente estava.
Andamos pelo mesmo caminho que eu tinha feito pela manhã. Já era tarde avançada, e o sol parecia uma bola vermelha pendurada por cima das montanhas do oeste. Os picos nevados brilhavam com os reflexos rosados do crepúsculo.
- É bonito aqui. Eu gosto – disse Ana. – Você gosta também?
- É bonito aqui. Eu gosto – disse Ana. – Você gosta também?
- É bonito – respondi -, mas sinto falta dos meu amigos. Não vou conseguir ter amigos aqui. Vou odiar este lugar.
- Vou ter amigos – afirmou Ana, se afastando de mim aos pulinhos e cantando. – Vou ter uma vaca. Vou ter um cachorrinho. Vou ter um gato.
Reparei que um pássaro enorme, talvez uma águia, estava voando em círculos lá no alto. Parei para admirar são maneiros, preguiçosa e suave de deslizar pelo ar sem sequer mexer as asas. Eu adoraria ser capaz de voar daquele jeito, só aproveitando as correntes e planando. “Vou ter de descobrir que tipo de pássaro é aquele”, pensei. “Vou ter de aprender esse tipo de coisa para viver por aqui.”
Então me lembrei de Ana. Provavelmente ela já se aborrecendo de me esperar. Olhei para todos os lados, mas não a vi em lugar algum.
- Ana? – chamei, ao mesmo tempo em que me apressava pela estrada abaixo. – Ana, não vá se perder! Espere por mim!
- Eu estou aqui, Lua! – gritou Ana. – Encontrei uma vaquinha amiga. Olhe!
Segui na direção do som de sua voz e de repente estaquei com o coração batendo a mil por hora. Ana estava no meio de um pasto, andando em direção a um gigantesco touro negro. Agora eu percebi que não havia como confundir um touro de verdade com uma vaca. Uma imensa cabeça, um corpo possante pesado, uns chifres enormes e ameaçadores. O que Arthur tinha me dito? “Só há um touro por aqui com que você tem que se preocupar: o que fica no pasto ao lado do rio.”
- Ana... – chamei suavemente, esperando que minha voz chegasse até ela, já que eu não queria gritar para não chamar a atenção do touro.
Contudo, ela não pareceu me ouvir e continuou a se aproximar mais do touro a cada segundo, com o braço esticado como se quisesse cumprimentá-lo.
Só havia uma coisa que eu podia fazer: entrar no pasto e ir atrás dela. Vovô tinha dito uma vez que você tem de mostrar aos animais quem é o chefe, mas eu não achava que um touro daquele tamanho iria me levar muito a sério. Eu tremia como geléia quando pulei a porteira e comecei a andar na direção de Ana. Ela se virou e me viu.
- Ei, Lua, venha comigo conversar com a vaquinha – disse.
- Ana, preste atenção em mim – sussurrei com a voz mais calma possível. – Quero que você comece a andar de volta para cá, na minha direção, bem tranqüilamente. Não corra. Não grite. Aquilo ali é um touro, e nós não queremos irritar ele. Entendeu?
- Talvez ele só esteja se sentindo sozinho – argumentou Ana. – Ele tem uma cara simpática. Aposto que quer um amiguinho.
- Talvez ele só esteja se sentindo sozinho – argumentou Ana. – Ele tem uma cara simpática. Aposto que quer um amiguinho.
O touro finalmente reparou na nossa presença. Ele levantou a vista da sua pastagem e bufou.
- Nós vamos sair daqui agora – ordenei. – Apenas ande, com calma e o mais rápido possível. Se ele começar a vir atrás de nós, então corra como uma louca na direção da porteira.
Dessa vez ela não argumentou. Percebeu o meu medo e ficou com medo também. Só rezei para que o touro não tivesse percebido. Começamos a atravessar o pasto, e escutei o touro bufar de novo. A porteira parecia mais distante. E aí escutei algo mais: o som seco de uns cascos de cavalo. Arthur Aguiar apareceu de repente.
- Oh, meu Deus! – exclamou ele. – Não se mexam! Fiquem exatamente onde estão e não corram!
- Oh, meu Deus! – exclamou ele. – Não se mexam! Fiquem exatamente onde estão e não corram!
Então ele desmontou, pulou a porteira, e foi andando na direção do touro.
- Oi, Barnaby. Oi, meu velho – disse Arthur, dando uns tapinhas no pescoço do monstro e falando o tempo todo com uma voz doce e apaziguadora. – Quem é o touro mais bonzinho do Wyoming, hein? Epa, Barnaby, meu velho Barnaby...
Arthur olhou na nossa direção.
- Oi, Barnaby. Oi, meu velho – disse Arthur, dando uns tapinhas no pescoço do monstro e falando o tempo todo com uma voz doce e apaziguadora. – Quem é o touro mais bonzinho do Wyoming, hein? Epa, Barnaby, meu velho Barnaby...
Arthur olhou na nossa direção.
- Agora andem até a porteira. E, pelo amor de Deus, não corram.
Arthur ficou com o touro até que nós duas estivéssemos a salvo, e então começou a voltar, conversando com o touro o tempo todo até ele próprio ficar a salvo também.
- Obrigada... – comecei.
- Obrigada... – comecei.
Mas ele me olhou com uns olhos cheios de fúria e começou a gritar.
- Por acaso você é completamente idiota? Eu não disse a você hoje mesmo de manhã que esse é o único touro por aqui com que tem que se preocupar? E o que você faz? Vem fazer uma visitinha de cortesia a ele! Você tem um parafuso a menos, não tem? Será que toda a gente da cidade tem uma cabeça de titica como você? Foi uma idéia estúpida do seu avô trazer vocês aqui! Deveriam ter ficado na cidade, que é o seu lugar!
- Por acaso você é completamente idiota? Eu não disse a você hoje mesmo de manhã que esse é o único touro por aqui com que tem que se preocupar? E o que você faz? Vem fazer uma visitinha de cortesia a ele! Você tem um parafuso a menos, não tem? Será que toda a gente da cidade tem uma cabeça de titica como você? Foi uma idéia estúpida do seu avô trazer vocês aqui! Deveriam ter ficado na cidade, que é o seu lugar!
A essa altura eu já estava tão brava quanto assustada.
- Pode acreditar – rebati, também gritando – que não foi idéia minha vir para este fim de mundo! Não havia nada do que quisesse mais do que ter ficado na cidade! E, para sua informação, não sou nem um pouco idiota. Minha irmãzinha não sabia nada sobre o touro, e ela estava no meio do pasto. Alguém tinha de tirá-la de lá.
Ele me olhou fixo.
- E você entrou para pegá-la?
- Ela não ia sair sozinha – respondi dando os ombros.
- Caramba! Isso foi realmente um ato heróico – disse ele. – Ainda mais considerando o quanto ficou assustada com uma vaca hoje de manhã.
- Eu não tinha escolha. Esse touro é mesmo tão perigoso?
- Ele matou um peão tempos atrás – respondeu Arthur. – E quase arrancou a perna do meu pai uma vez em que ele não soube cair fora na hora certa.
- Então também foi um ato heróico da sua parte entrar lá agora – retruquei com a voz ainda trêmula. – Especialmente para resgatar duas forasteiras inúteis como nós.
Ficamos parados alguns segundos nos encarando, os olhos dele fixos nos meus. Então ele encolheu os ombros.
Ficamos parados alguns segundos nos encarando, os olhos dele fixos nos meus. Então ele encolheu os ombros.
- O velho Barnaby me conhece – disse Arthur. – Ele gosta que eu o afague. Mas me prometa uma coisa: que você não vai mais visitar nenhum bicho até eu poder te ensinar a diferença entre vacas e touros.
Ele colocou o chapéu de volta e sorriu enquanto pegava nas rédeas de seu cavalo.
- Eu queria ver você sobreviver na cidade! – gritei pelas costas dele. – Queria ver você atravessar uma rua na hora do rush, escapar dos táxis que quase atropelam a gente, encontrar a linha certa do metrô e conseguir não ter sua a carteira roubada. Sei fazer tudo isso maravilhosamente bem. Porque é o meu território, o lugar ao qual eu pertenço.
Agarrei a mão de Ana e comecei a caminhar na direção de casa, praticamente arrastando-a. Mas logo escutei os passos de Arthur atrás de mim.
- Desculpe-me – pediu ele. – Não foi por querer que gritei com você agora pouco. É que eu fiquei nervoso demais quando vi vocês duas lá no meio do pasto com aquele touro. Eu sei como ele pode ser rápido quando quer. E você está certa com relação à Nova York. Eu não saberia mesmo como escapar dos táxis e dos batedores de carteiras.
Então ele se agachou até a altura de Ana.
Então ele se agachou até a altura de Ana.
- E você, pequena, está tudo bem agora? Quer uma carona?
Quando ela solenemente fez que sim com a cabeça, Arthur a colocou em cima da sela. Foi estranho, mas tive uma indefinível sensação ao vê-la sendo erguida por ele com tanta facilidade, como se não tivesse peso algum. E me peguei divagando sobre como seria sentir aqueles braços fortes ao meu redor, meus cabelos roçando no rosto dele. Será que me colocaria sobre a sela com um tapinha amigável como o que dera na perna de Ana? Subitamente fiquei furiosa comigo mesma por causa daqueles pensamentos ridículos.
- Você está bem aí em cima? – perguntei a Ana.
Ela assentiu balançando a cabeça, com um ar sério e compenetrado.
- É só segurar nesse chifre da sela que não tem perigo – explicou Arthur.
Ele começou então a caminhar a pé ao meu lado, puxando o cavalo a passo pelas rédeas.
- Vou acompanhar vocês até em casa. Só por segurança.
- Vou acompanhar vocês até em casa. Só por segurança.
Fomos andando pela beira da estrada. Eu estava tão perturbada pela presença dele que era difícil colocar os meus pensamentos em ordem. Queria bater um papo leve e espirituoso, de maneira que ele pudesse perceber que nós, nova-iorquinos, somos sofisticados. Mas não me vinha nem uma palavra à cabeça. Quando um alto caule de centeio selvagem roçou na minha mão, dei um salto. Por um segundo pensei que fosse a mão dele pegando na minha.
- O que foi agora? – perguntou Arthur, sorrindo de novo.
- Nada. Só um inseto – menti.
Andamos quietos, ouvindo apenas o barulho dos cascos do cavalo. Finalmente ele quebrou o silencio.
- Deve ter sido duro para você se separar de todos os seus amigos bem no meio do colegial.
Balancei a cabeça afirmativamente. Ele estava sendo gentil, e eu não sabia como lidar com isso.
Balancei a cabeça afirmativamente. Ele estava sendo gentil, e eu não sabia como lidar com isso.
- Você nem imagina como – respondi. – Eu estudava numa escola maravilhosa, que tem tudo: arte, música, teatro. Poderia depois ter conseguido entrar em qualquer faculdade que eu quisesse, e agora estou atolada aqui, no meio do nada.
Ele tentou digerir aquilo.
Ele tentou digerir aquilo.
- É verdade, a Indian Valley High School com certeza não é a melhor escola do mundo – disse ele. – Para começar, é muito pequena. Mas a gente se diverte bastante. Bailes, reuniões e coisas assim. Temos uma grande festa-baile agora no Dia das Bruxas, no dia 31 de outubro. Você quer ir?
Eu não tinha certeza se ele estava me fazendo um convite genérico ou me convidando como sua acompanhante. Ainda não sabia nada a respeito dos costumes entre garotos e garotas do Wyoming. Se aceitasse a oferta, seria eu oficialmente condecorada como “a garota do Arthur”? Eu podia até imaginar a reação de Sophia: “Espero que você tenha aprendido a gritar ya-hu e a evitar os chutes das botas doscowboys”, diria ela. Acabei me decidindo pela opção mais segura.
- Hã... não, obrigada – respondi. – Deixei o mais maravilhoso namorado do mundo em Nova York, e acho que ele não gostaria de me ver indo dançar por aí com outros garotos.
- Hã... não, obrigada – respondi. – Deixei o mais maravilhoso namorado do mundo em Nova York, e acho que ele não gostaria de me ver indo dançar por aí com outros garotos.
- Era só como amiga – disse Arthur, parecendo magoado. – Estava só tentando ser amigável, já que não conhece ninguém por aqui. Você quer se adaptar e se enturmar e se divertir, não quer?
- Não, não quero – retruquei. – Não queria nem vir para cá e não vejo a hora de voltar para Nova York. Meu pai prometeu que vai me deixar voltar se até junho eu ainda estiver miseravelmente triste. Por isso pretendo ficar miseravelmente triste até lá.
Arthur me olhou com uma expressão de estranheza.
- Eu diria que essa é uma maneira burra de encarar as coisas – observou. – Na minha opinião, a gente tem de tentar sempre fazer o melhor em cada situação.
- E imagino que acha que você é o melhor que Indian Falls tem a oferece - revidei, pega com a guarda baixa pela aspereza da crítica dele.
- E imagino que acha que você é o melhor que Indian Falls tem a oferece - revidei, pega com a guarda baixa pela aspereza da crítica dele.
- Foi você quem disse não eu – brincou ele, com um largo sorriso no rosto.
- Vamos, Ana, já estamos quase chegando em casa agora. Podemos andar o resto do caminho a pé – disse eu, puxando-a da sela.
- Mas eu gosto de cavalgar! – protestou ela quando a agarrei pela mão.
- Tudo bem, se é assim que você quer – ponderou Arthur. – De todo jeito, não há mesmo nenhum touro daqui até o seu portão.
- Obrigada de novo pela ajuda – murmurei.
- De nada – disse ele. – Afinal essa é a característica pela qual nós, caipiras, somos conhecidos: simples, porém prestativos.
Ele fez uma careta e tive de rir quando pulou para cima de seu cavalo e saiu a galope. Fiquei lá parada, olhando ele ir embora. Se for mesmo apenas um caipira simplório, porque então eu ficara tão afetada por suas palavras e sua presença?
Ana deu um puxão na minha mão.
Ana deu um puxão na minha mão.
- Acho que ele gosta de você, Lua – falou. - Ele vai ser o seu novo namorado?
- Para sua informação, Ana, não pretendo ter nenhum namorado por aqui. Chay está esperando por mim em Nova York.
- Então porque você ficou vermelha? – perguntou.
- Estou quente por causa de toda essa caminhada, só isso. Agora pare de fazer perguntas cretinas – disparei e saí andando tão rápido que ela teve de correr para me alcançar.
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